Conheça a história de Jairo Lemos
Foto: Guilherme Veríssimo/DP/D.A Press.
Conheça a história de Jairo Lemos; hoje, perito criminal da Secretaria de Defesa Social de Pernambuco, mas, na juventude, integrante de força da ONU encarregada de manter a paz na Faixa de Gaza, entre Israel e Egito, desde a década de 60.
Oficialmente, o Brasil nunca foi agraciado com um Prêmio Nobel da Paz. Aliás, até pouco tempo, o país não tinha reconhecimento em nenhuma das áreas do prestigiado comitê, o que não quer dizer que brasileiros nunca tenham sido contemplados na premiação. O carioca Peter Medawar ganhou o Nobel de Medicina em 1960, mas como teve a cidadania cassada durante a segunda guerra, radicou-se no Reino Unido, ao qual o título foi atribuído. Recentemente, a lista oficial passou a também reconhecer o país pela honraria.
Em 1988, foi a vez de dezenas de integrantes brasileiros do “Batalhão de Suez” serem reconhecidos com o Nobel da Paz, força da Organização das Nações Unidas (ONU) encarregada de manter a paz na Faixa de Gaza, entre Israel e Egito, desde a década de 60. Entre os chamados “Boinas Azuis”, há ao menos um pernambucano ainda vivo, que, ironicamente, anos depois de ter como função primária, a manutenção da paz, ganha a vida como perito criminal, com o fruto direto de um dos estados mais violentos do país.
Ser remunerado em dólares, conhecer vários países e decretar a independência financeira dos pais. A proposta seria irrecusável, caso não envolvesse lidar com forças xiitas e passar os dias num deserto onde não há nada constante além da alta temperatura diurna e do frio da noite seca, nem mesmo as dunas de areias que mudavam de endereço a cada tempestade. Mas, aos 18 anos, Jairo Lemos encarava a proposta como sina, fruto de uma série de características e senso de hierarquia que não lhe mostravam carreira mais apropriada que a militar.
Alistado para o serviço obrigatório em Jaboatão dos Guararapes, foi voluntário para integrar o 18° Batalhão Rio Grande do Sul, formado pela nata de soldados de todo o Nordeste para substituir os paulistas que já se encontravam em plena Faixa de Gaza, no ano de 1967. Durante um ano e meio, viu turbantes e areia. Elementos mais recorrentes de quem se arriscava na missão. “Tinha medo. Claro. Todo mundo respeitava o brasão da ONU, mas nunca se sabe. Na época, atirei poucas. Todas para o alto. Pedíamos para recuarem das fronteiras e todos obedeciam. Mas era tenso. Avião, por exemplo, se não tivesse o símbolo da ONU, víamos ser abatido antes de chegar ao aeroporto”, lembra.
Ligações, via rádio, para a família, era a cada um ou dois meses. Aplacava a solidão de dezenas de homens que, do Brasil, recebiam apenas cartas com notícias já recebidas com atraso. O cotidiano de trincheiras era aliviado por cerveja e pelas viagens, nos poucos dias de folga, aos sete países que conseguiu conhecer e revisita a cada remexida nas caixas de fotografias nunca empoeiradas.
Medalha remetida pelo Comitê do Prêmio Nobel sobre o prêmio da Paz aos Boinas Azuis, em 88
Sem ampla divulgação ou fontes de informação mais democráticas, o reconhecimento veio sem alarde. Em 1988, o Batalhão de Suez, que contava com tropas de dez nações, foi contemplado com o Nobel da Paz. Apenas em 2012, Jairo tomou nota da história. “Um amigo, que serviu comigo, ligou perguntando se eu já tinha solicitado meu Nobel. E eu sem entender... Foi quando ele disse que outros colegas já tinham recebido o direito. Quis também, claro!”.
Meses de papeladas, fotografias e cópias de documentos depois, o presente de natal, no ano passado. Um malote pequeno, quase insignificante, trazia uma medalha em bronze como reconhecimento pelo esforço para manter a paz. Num pedaço de papel, assinado pelo punho do secretário Javier Perez de Cuellar, a prova que, nos próximos dias, ficará na parede da residência em San Martin, no Recife.
Entre as fotografias, marca os momentos inesquecíveis, como o banho no Mar Morto ou a escalada de uma das pirâmides do Egitos. Mas é a imagem de uma menina, cujo nome tenta “aportuguesar” como Refróa, que mexe com o passado. “Depois de uma tempestade de areia, um camelo acabou pisando numa das bombas de um campo minado. Os estilhaços atingiram o braço dela. Todo dia visitava a família. Usei o kit de socorros da gente por mais de um mês. As pessoas daquela área são muito sofridas”, lembra, sobre uma paz que promoveu, sem perceber, tendo cuidado e atenção como única arma, ainda hoje, rara.
Com 68 anos, o timbaubense Jairo Lemos é perito criminal especial da Secretaria de Defesa Social de Pernambuco. Nos últimos 50 anos, após a experiência no exterior, onde aprendeu a se comunicar em inglês e árabe, estudou odontologia e direito e se prepara para a aposentadoria, que vem dobrando a esquina. Como patrimônio tem nove filhos, cinco netos e um título do Comitê do Prêmio Nobel, enviado pelo consulado brasileiro na Noruega. É o que basta. Informado que o ex-presidente Lula chegou a ser cotado ao Prêmio, mas não foi escolhido, brinca: “Meu Deus! Será que estou melhor que o Lula?”, sorri. “Mas ele vai ganhar…”, diz.
No cotidiano de quem já vivenciou uma realidade de guerra, enfrenta o conflito urbano que gera um saldo de três mil mortes por ano no estado. As cinco décadas que separam os dois papéis sociais desempenhados unem-se na certeza que repousa no travesseiro todas as noites: continua promovendo a paz. “Cada vez que conseguimos esclarecer as circunstâncias que abrem caminho para que a Justiça seja feita, defendo a paz, a meu modo. E essa paz, um dia vai se fazer real”, diz, com a retidão de quem enxerga ironia apenas no fato de que há tantos que morrem sem ter, de fato, vivido.
Certificado reconhece o pernambucano como integrante do Batalhão de Suez, condecorado com o Nobel da Paz |
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